Los Afectos, de Rodrigo Hasbún

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Ouvi falar de Rodrigo Hasbún tão logo iniciei minhas pesquisas para este blog, mas me retive até o momento devido ao preço extraordinariamente caro dos seus livros, cuja comercialização dificilmente chega ao Brasil ou a Portugal.

Boliviano de Cochabamba, Hasbún tem apenas 34 anos, mas já é conhecido como um dos escritores mais talentosos da América Latina. Lançado há poucos meses, Los Afectos consiste no seu mais recente trabalho. Trata-se de um livro curto, contendo pouco menos de 150 páginas, cuja classificação oscila entre a novela e o romance. Baseado em fatos reais, o livro relembra um episódio pouco comentado da história do século XX: o assassinato em Hamburgo do cônsul boliviano Roberto Quintanilla Pereira, um dos principais responsáveis pela morte de Che Guevara, pela bela guerrilheira Monika Ertl, eternamente lembrada como “a vingadora de Che”.

Originariamente de Munique, a família Ertl mudou-se para a Bolívia em meados dos anos 50, trazendo consigo uma biografia pitoresca. Hans Ertl, o patriarca, foi um famoso cinegrafista e aventureiro, tendo não apenas trabalhado ao lado de Leni Riefenstahl nos seus mais famosos trabalhos de propaganda hitleriana, mas também escalado alguns dos mais imponentes picos do mundo. A trama tem início com a expedição realizada por Hans nas profundezas da selva boliviana, em busca do legendário reino de Paitití, uma espécie de Eldorado dos Incas. No livro, cujo caráter ficcional é enfatizado desde o princípio, Hasbún foca nas conturbadas relações familiares do clã Ertl a partir da expedição, até a dissolução completa dos laços existentes entre eles em meados dos anos 1970. Para isso, elege não apenas um único, mas uma série de narradores em primeira pessoa: as filhas Monika, Heide e Trixi, bem como, em menor medida, Reinhard, um dos amantes de Monika.

A julgar pela leitura de Los afectos, é possível dar-se conta dos motivos pelos quais a literatura de Hasbún tem sido tão celebrada. Afinal, o pequeno livro encontra-se repleto de escolhas bem feitas, como por exemplo abdicar de um fundo histórico por si só cativante, em nome de um estudo aprofundado das relações de família. Com isso, o enfoque é retirado das biografias peculiares de seus protagonistas, e passa a residir no que elas partilham com todos os seres humanos: suas dúvidas, frustrações, bem como o desvanecer lento e gradual de todas as suas utopias, desde o amor ou a glória, até a justiça social. O sucesso dessa ousada empreitada na psique humana é obtido através de uma polifonia dura e crua, que confunde o leitor ao ponto de o obrigar a voltar muitas vezes para o início do capítulo, mas que sem dúvida consiste num dos mais bem-sucedidos aspectos do livro.

A julgar por esse livro, nota-se que não é exagero considerar Rodrigo Hasbún uma das maiores promessas da atual literatura latino-americana. Não é mesmo grave o fato de que a literatura de um país vizinho possa nos ser tão pouco acessível?

 

Título original: Los afectos

País: Bolívia

Idioma original: espanhol

Ano de publicação: 2015

Edição em português: não encontrada

Edição em espanhol: Random House (ISBN 978-843-9730-60-6)

Número de páginas: 144

American Gypsy, de Oksana Marafioti

Marafioti, Gypsy

Quem estiver interessado, encontrará facilmente outros (poucos) blogs dedicados a um projeto parecido com o meu: ler um livro de cada canto do mundo. Porém, pesquisando suas listas de leituras, surpreendo-me com tentativas horrendas de forçar uma determinada nacionalidade em cima de um livro, em nome de completar a lista a todo custo. Sete Anos no Tibet, por exemplo, passa a ser um livro do Liechtenstein, porque o autor austríaco viveu nesse país durante alguns anos, enquanto o ultracolonialista Coração das Trevas, de Joseph Conrad, entra na lista como um livro do Congo. Como determinar a nacionalidade de um livro? Quais os critérios a serem levados em consideração?

Foi pensando nisso tudo que descobri Oksana Marafioti, uma cigana que nasceu num país que não existe mais, passou a infância e a juventude de cidade a cidade, e se radicou nos Estados Unidos aos quinze anos de idade. Neste, todos os possíveis critérios de identidade simplesmente não se aplicam – e eis justamente o que confere beleza à sua narrativa.

American Gypsy é um relato estritamente pessoal, escrito em primeira pessoa, sobre os anos de formação de uma rapariga  pouco comum. Filha de pai cigano e mãe armênia, Oksana cresceu junto à família do pai, uma trupe de artistas que faziam espetáculos de música e dança por toda a União Soviética. Pouco antes da queda do regime de Stalin, a família conseguiu imigrar rumo à cidade de Los Angeles, onde Oksana tenta então montar o quebra-cabeças da própria personalidade. Nascida na cidade de Riga, hoje capital da Letônia, e oriunda de um país que deixou de existir, a menina que sentira na pele o preconceito decorrente de seu sangue cigano, sonha em ser um dia uma verdadeira americana – a exemplo de um Pinóquio contemporâneo que deseja se tornar um menino de verdade. Suas memórias dos primeiros anos em território americano são entrecortadas por digressões que nos remetem aos confins da Rússia, intercalando passado e presente narrativo de modo a revelar, pouco a pouco, uma biografia peculiar.

Nos Estados Unidos, Oksana descobre que ser cigana não é tão mau assim. Sua origem confere-lhe ares de exotismo, embora o que a adolescente mais anseia é anular suas idiossincrasias, passando a ser só mais um rosto na multidão. Filha de uma mãe alcoólatra e de um pai errante, que abandona a família para viver com a amante mal colocam os pés na terra do Tio Sam, Oksana descreve sua tentativa de se integrar em meio a brigas, ameaças de casamento arranjado e seções de exorcismo, num mundo que pode ser tudo, menos “normal”. Com o tempo, a menina soviética taciturna e sem amigos consegue encontrar o seu lugar no mundo, e se dá conta de que sua força reside justamente naquilo que a distingue dos outros.

Do ponto de vista narrativo, American Gypsy é um livro sem grandes destaques: o texto é correto, sem fortes demonstrações de virtuosismo literário, mas também sem graves defeitos a serem criticados. Seu vocabulário muitas vezes rebuscado, bem como seu apego pelo preciosismo, refletem a busca de uma autora estrangeira por apoderar-se ao máximo de uma língua que não é a dela, o que, longe de atrapalhar, confere à leitura maior autenticidade. Tudo isso é entremeado por uma série de fotografias do álbum familiar de Oksana, criando uma ponte entre realidade e ficção. Eis a fórmula de um livro interessante, que abre uma pequena fresta para um universo que nos é alheio, e que só por isso já merece ser lido. Um livro que é tão letão ou tão americano quanto é universal.

Título original: American Gypsy: A Memoir

País: Letônia

Idioma original: inglês

Ano de publicação: 2012

Edição em português: não há

Edição em inglês: FSG Books (ISBN: 978-037-4104-07-8)

Número de páginas: 383 (edição em inglês)

 

The Dead Lake, de Hamid Ismailov

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Quantas pessoas saberiam situar o Usbequistão num mapa? Para a maioria, este pequeno país banhado pelo deserto salgado do Aral não passa de um mistério. Oficialmente uma democracia, o Usbequistão ainda preserva muito do seu antigo passado como uma das Doze Repúblicas da União Soviética, nomeadamente no que diz respeito à tendência autoritária, à aversão aos direitos civis e ao fechamento para o resto do mundo. Um exemplo disso é o fato de que Hamid Ismailov, um dos seus mais prolíferos escritores, foi obrigado a deixar o país em 1992, tendo seu nome sido apagado dos anais da literatura uzbeque.

Aqueles que tiverem o privilégio de descobrir Ismailov não deixarão de lamentar a sorte de seus patrícios. Nascido no Quirguistão, o autor explora em seus textos a realidade das antigas repúblicas soviéticas, respeitando, por um lado, as idiossincrasias históricas que as distinguem, mas focando, todavia, em seu passado recente comum. “Wunderkind Yerzhan” (tradução livre do título original russo), que infelizmente não se encontra traduzido para o português, desenrola-se no Casaquistão, ou mais precisamente no povoado microscópico de Kara-Shagan, aglomerado em volta de uma estação e habitado por apenas duas famílias. O ponto de partida da narrativa é uma viagem de trem pelos confins cazaques nos anos 1990, durante a qual o narrador em primeira pessoa, um forasteiro que não se dá a conhecer, encanta-se com a habilidade de um violinista de doze anos, o qual, no entanto, mostra-se muito ofendido ao ser tratado de “menino”. Trata-se, na verdade, de um homem de 27 anos, aprisionado eternamente num corpo de infante.

Durante as longas horas de viagem pelas estepes, conhecemos a história de Yerzhan, cuja infância é descrita com riqueza de detalhes, cercada por uma atemporalidade que nos remete aos contos de fadas do Romantismo Alemão. Concebido em circunstâncias jamais reveladas pela mãe emudecida, o menino prodígio (Wunderkind) foi criado pelas avós das duas famílias vizinhas, ao lado de sua amada Aisulu, um ano mais nova que ele, e com quem um dia iria se casar. Mas o pequeno paraíso idílico onde as duas crianças cresciam ao som de Dean Reed (o “Elvis Comunista”) avizinhava-se de um lugar terrível: uma usina nuclear em atividade. Seu ritmo de vida era marcado pelas explosões frequentes, algumas delas provocando graves acidentes, embora ninguém parecesse se aperceber do risco iminente que corriam. Até que o ousado Yerzhan, para se mostrar aos coleguinhas da escola, decide mergulhar nas águas insalubres do “lago morto”, uma imensa piscina aberta por uma explosão nuclear. Quando os anos passam e todas as outras crianças continuam a crescer, menos Yerzhan, fica a sugestão de que sua eterna juventude teria sido causada pelo banho no lago da morte.

Chega a ser fascinante observar como o autor dá ao tema contemporâneo – a herança macabra da radioatividade – um tratamento tão atemporal e universal, substituindo poderes sobrenaturais e bruxas malvadas pelo empenho soviético em produzir armas nucleares durante a Guerra Fria. Seu estilo narrativo, repleto de magia, faz lembrar clássicos como E.T.A. Hoffmann no Pequeno Zacarias, ou Adelbert von Chamisso em Peter Schlemihl. O resultado é uma novela tão bonita e tão triste que é quase impossível não ficar comovido, e que hesitamos em terminar conscientes do desfecho inevitavelmente trágico. O que nos consola, no entanto, é saber que o final foi inventado pelo homem do trem, e que, se não ficarmos satisfeitos, podemos deixar o resto a cargo da imaginação.

Se meu empenho em ler um livro de cada país tivesse servido para descobrir apenas este, todas as horas de busca já teriam valido a pena.

Título original: Вундеркинд Ержан

País: Usbequistão

Idioma original: russo

Ano de publicação: 2011

Título inglês: The Dead Lake

Edição inglesa: Peirene (ISBN 978-190-8670-14-4)

Título francês: Dans les eaux du lac interdit

Edição francesa: Denoël (ISBN 978-220-7125-92-2)

Número de páginas: 128 (edição inglesa)

Nada a invejar: Vidas comuns na Coreia do Norte, de Barbara Demick

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Qualquer pessoa que tente a façanha de ler um livro de cada país do mundo terá diante de si o problema dos países que quase não produzem literatura. Dentre eles, podemos incluir algumas ilhas do Pacífico cuja população é minúscula, uns tantos países africanos em constante estado de guerra, e outros, como o Butão e a Mongólia, nos quais a cultura escrita ainda não suplantou a oralidade. Mas, dentre esses países “exóticos”, também há aquele que corresponde a uma espécie de extraterrestre risível e incômodo, cujo anacronismo de continuar a existir desafia até mesmo as previsões político-econômicas mais pessimistas. Trata-se, obviamente, da Coreia do Norte.

A bem da verdade, ler um autor norte-coreano acaba por não ser tão difícil: pelo menos as livrarias de língua inglesa estão abarrotadas de relatos de dissidentes norte-coreanos, que conseguiram cruzar a fronteira com a China e hoje vivem fora da abençoada terra do Grande Líder. Esta mesma semana, o jornal português “Público” lançou uma reportagem sobre o recém-editado A mulher com sete nomes, da refugiada Hyeonseo Lee. No entanto, a fim de tentar compreender uma realidade tão complexa como aquela da Coreia do Norte, pareceu-me mais adequado recorrer a um livro que abarcasse o maior número de fontes possível – daí a opção pelo premiado Nada a invejar, da jornalista norte-americana Barbara Demick.

O contexto no qual ouvi falar pela primeira vez do livro de Demick não podia ter sido mais anti-socialista: Foi em 2012, durante um jantar na capital das Ilhas Cayman, logo após uma viagem a Cuba que culminara na descoberta nefasta do decrépito sistema de saúde cubano. Nossa anfitriã, uma sul-africana, trabalhava como cozinheira particular para uma família de bilionários cujo nome estava proibida por contrato de mencionar, e era dela o exemplar do livro sobre a Coreia. Na altura, cercada pelo luxo de um dos principais paraísos fiscais do mundo, deixei escapar a oportunidade de o ler.

Nada a invejar compreende o resultado de um trabalho de quase uma década acerca de uma das últimas ditaduras socialistas do século XX. Por meio do retrato de alguns cidadãos norte-coreanos, complementados pela comparação a outras fontes existentes sobre o país, a autora traça um vasto panorama de como é viver no país mais fechado do mundo. Um lugar onde, até pouco tempo, as pessoas sequer tinham ouvido falar de telefones celulares, onde a internet não existe, e a única fonte de informação consiste nos três canais de televisão estatais. Mais do que isso, trata-se de um país que viveu um verdadeiro milagre econômico durante os anos 1960, mas que perdeu absolutamente tudo após a queda da União Soviética: a produção industrial cessou completamente, juntamente com o pagamento de salários, a distribuição de alimentos e a eletricidade, fazendo com que a população esfomeada fosse entregue ao próprio destino. No entanto, contrariamente a Cuba, onde um arremedo do dólar circula abertamente, e o auto-empreendimento e o turismo internacional são fortemente encorajados, a Coreia do Norte continua a punir com a morte qualquer espécie de comercialização, o que faz com que seus índices de pobreza e subnutrição ultrapassem os níveis das piores crises de fome centro-africanas. Por outro lado, as constantes ameaças atômicas às democracias ocidentais, sobretudo aos Estados Unidos, bem como aos vizinhos (e irmãos) sul-coreanos, impossibilitam qualquer intervenção da parte de organizações internacionais, relegando uma população faminta e lobotomizada pela propaganda pró-dinastia Kim a um estado constante de miséria que já dura quase 30 anos.

Embora o excesso de detalhes possa vir a atrapalhar o fluxo de leitura daqueles mais habituados a uma literatura mais fácil, o livro de Demick chega a ser viciante. A autora soube aliar o estilo jornalístico investigativo a uma narrativa mais pessoal, quase romanceada, baseada em longas sessões de entrevistas. Escolhendo a dedo figuras deveras distintas, mas ao mesmo tempo muito semelhantes graças ao histórico de vida num país que aboliu a individualidade, o livro acaba transformando esses heróis e heroínas da vida real em personagens de romance, cujo destino o leitor ficará ansioso para desvendar, à espera, quem sabe, de um final relativamente feliz.

Mas será que se pode falar de relativa felicidade enquanto o pesadelo não acabar?

Título original: Nothing to Envy: Ordinary Lives in North Korea

País: Coreia do Norte

Idioma original: inglês

Ano de publicação: 2009

Título brasileiro: Nada a invejar: Vidas comuns na Coreia do Norte

Edição brasileira: Companhia das Letras (ISBN: 978-853-5922-73-8)

Título português: A longa noite de um povo: A vida na Coreia do Norte

Edição portuguesa: Temas e debates (ISBN 978-989-6441-40-1)

Número de páginas: 416 (edição brasileira), 368 (edição portuguesa)

 

O jantar errado, de Ismail Kadaré

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De todos os países da Europa, a Albânia é certamente o menos europeu. Há alguns anos, atravessar a fronteira de Ulcinj, no Montenegro, a Shkoder, na Albânia, foi para mim como abandonar um território seguro e ingressar nas profundezas da Idade Média. De todos os países da Europa, a Albânia é também um dos menos conhecidos. Pouca gente sabe dizer onde se localiza este pequeno país mediterrânico que até há pouco vivia sob uma ditadura comunista aliada à China. Mas essa terra incognita abriga um nome algo familiar, nem que seja devido ao sucesso da adaptação cinematográfica de seu romance Abril Despedaçado: Ismail Kadaré, diversas vezes cotado para o Nobel da Literatura.

O jantar errado, publicado em Portugal sob o título de Um jantar a mais, narra a história tragicômica de um encontro entre dois antigos colegas de faculdade, e das consequências por ele causadas ao longo de mais de uma década. A trama se desenrola em Girokastra, terra natal de Kadaré, e tem por protagonistas dois ginecologistas, o doutor Gurameto Grande, e o seu rival, o doutor Gurameto Pequeno.

Durante a segunda guerra mundial, a pequena cidade com complexos de centro do mundo torna-se palco de acontecimentos vultuosos: Gurameto Grande, admirador do poder bélico alemão, recebe a inesperada visita de um velho amigo, um general nazista encarregado de anexar a Albânia. Ao acolher o visitante com todas as honrarias do código de hospitalidade albanês, o médico acaba por salvar da morte 80 homens condenados pelo general – dentre eles até mesmo um judeu. Como ninguém sabe o que foi conversado durante o jantar, a cidade se entretém a brincar de telefone sem fio, espalhando boatos ora de louvor, ora de repúdio ao anfitrião forçado.

Mas é após a queda do Terceiro Reich e a tomada de poder do Partido Comunista que a coisa realmente se complica, fazendo de Gurameto uma espécie de Geni da canção de Chico Buarque: outrora considerado um herói, ele passa a ser considerado um traidor da nação. A partir deste ponto, não apenas Gurameto Grande, mas também seu pobre alter ego Gurameto Pequeno, que nada tinha a ver com a história, tornam-se vítima de um mecanismo absurdo e cruel, que não lhes dará direito de defesa.

Diversos aspectos caracterizam O jantar errado como um livro original. A começar por quase não conter personagens coadjuvantes: todos eles se misturam formando a “voz da cidade”, uma voz que muda de opinião e de partido político como quem troca de cuecas. Depois, pelo próprio estilo narrativo de Kadaré, que se deixa levar pelas pseudoverdades e acaba confundindo o leitor num imbróglio em que já não se sabe o que de fato aconteceu. E é o absurdo, aliado ao pano de fundo político, que nos mostra com brilhantismo que a realidade muitas vezes não tem pé nem cabeça.

Sem deixar de lado a ironia e a autocrítica, Kadaré descreve um verdadeiro circo de aberrações, revelando o lado perverso e nada coerente daquele que é conhecido como o “regime democrático popular”. O resultado de seu trabalho é um livro curto, delicioso e extremamente divertido. Afinal, rir para não chorar é por vezes o melhor remédio.

Título original: Darka e gabuar

País: Albânia

Idioma original: albanês

Ano de publicação: 2008

Título brasileiro: O jantar errado

Edição brasileira: Companhia das Letras (ISBN: 978-853-5922-30-1)

Título português: Um jantar a mais

Edição portuguesa: Quetzal (ISBN: 978-972-5648-83-4)

Número de páginas: 168 (edição brasileira), 176 (edição portuguesa)

In the Shadow of the Banyan, de Vaddey Ratner

12ratner  /// "In the Shadow of the Banyan" by Vaddey Ratner ///

Quando a narrativa de memória e a placidez do budismo se encontram, o resultado é uma história poderosa e emocionante, capaz de oferecer ao leitor uma visão do sofrimento totalmente diferente daquilo ao qual estamos acostumados. Eis o que se pode esperar de In the Shadow of the Banyan, primeiro livro da escritora cambojana Vaddey Ratner.

A história é contada a partir da perspectiva da pequena Raami, uma menina de sete anos que sobrevive contra todas as chances durante o sangrento governo do Partido Comunista da Kampuchea no Camboja (1975-1979). Filha de um príncipe poeta e de uma bela plebeia, a menina que até então crescera no conforto do palácio, protegida dos males do mundo qual um pequeno Sidarta, tem sua realidade subitamente transformada pela chegada dos khmer vermelhos. Forçada a abandonar sua casa e evacuar a cidade em pleno dia de ano novo, sua família sofre o mesmo destino de todo cidadão cambojano, tragada pelo caos absoluto de um Regime sem sentido, e tentando manter-se unida enquanto vê todas as coisas que lhes são importantes serem-lhe, uma a uma, arrancadas. Se, por um lado, o fato de ser membro da antiga nobreza torna Raami um alvo potencial de soldados iletrados instruídos para matar sem a menor hesitação, uma perna deformada pela poliomielite acaba se tornando um estigma positivo, já que a vida de uma aleijada vale menos que uma bala.

À primeira vista, a trama de In the Shadow of the Banyan faz pensar em tantos outros romances recentes que têm como foco a memória de um conflito. Ademais, o fato de a história ser narrada a partir da perspectiva de uma menina pequena apenas confirma uma tendência, na qual se inserem outros livros que apresentamos este ano (como o argentino La casa de los conejos, de Laura Alcoba, o palestino As madrugadas de Jenin, de Susan Abulhawa, e o zimbabuano We Need New Names, de NoViolet Bulawayo). Para além de tudo, todos os romances citados acima foram escritos por jovens autoras radicadas no estrangeiro, que tentam empregar a leitura como forma de relembrar o passado, denunciar os crimes, e enterrar os mortos.

A exemplo de sua protagonista, Vaddey Ratner também era membro da antiga dinastia cambojana, e tinha apenas cinco anos quando o golpe aconteceu. Relembrar as experiências amargas do passado e transformá-las num romance deve ter sido, sem dúvida, um exercício doloroso – exercício este, no entanto, que a jovem escritora conseguiu realizar com uma beleza e uma leveza extraordinárias.

Mas, afinal, em meio a tantas tragédias e tantas histórias parecidas, o que faz do livro de Ratner um romance sem igual? A diferença, tão clara para quem o lê, é ao mesmo tempo tão sutil que fica difícil expressá-la em palavras. Talvez seja a serenidade característica do budismo, talvez o curso lento e ininterrupto das águas do Mekong, ou talvez a consciência de que nada é para sempre… O fato é que temos aqui a poesia de uma história focada não na perda, mas em tudo aquilo que resta, na beleza universal.

Título original: In the Shadow of the Banyan

País: Camboja

Idioma original: inglês

Ano de publicação: 2013

Edição em inglês: Simon & Schuster (ISBN 978-184-9837-60-6)

Edição em português: não há

Número de páginas: 352

La casa de los conejos, de Laura Alcoba

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Quando pensamos nos nossos vizinhos do sul, é impossível não nos referirmos à rivalidade no futebol. Enquanto os brasileiros se gabam de Pelé e Ronaldinho, os argentinos revidam com Maradona, e quando mencionamos com orgulho as cinco estrelas na camisa, nossos eternos adversários ironizam a derrota na última Copa do Mundo. Frivolidades à parte, existe um campo no qual a Argentina parece vencer o Brasil a muito mais que 7×1: no questionamento das atrocidades cometidas durante a ditadura e na busca pela verdade.

La casa de los conejos retoma um gênero de grande importância na América Latina do século XX, porém muito pouco explorado em terras tupiniquins: a literatura de memória ou de testemunho. À exceção de exemplos esparsos, como Fernando Gabeira, e, mais recentemente, Edney Silvestre, a Ditadura Militar de 1964-1985, embora fortemente presente no cinema nacional, raramente tem obtido espaço na literatura de ficção. Mais preocupada em reproduzir fórmulas gastas e imitar modelos norte-americanos, a literatura brasileira, refletindo a sociedade, cala, enquanto a de nossos vizinhos hispânicos não tem medo de falar – pelo menos a julgar pela nova leva de autores argentinos, como Martín Kohan, Félix Bruzzone e Laura Alcoba.

La casa de los conejos é narrado a partir da perspectiva de Laura, nove anos, filha de militantes de esquerda envolvidos na organização Montoneros, oposta ao brutal regime militar da época. A trama, que se desenrola no ano de 1976, é focada nos meses em que a menina, acompanhando a mãe foragida, compartilhou o teto com outros nomes da guerrilha, vivendo numa célula onde funcionava a imprensa montonera: a chamada “casa dos coelhos”. Romance modesto de pouco mais de cem páginas, o livro impressiona ao reconstruir o universo da resistência e narrar o cotidiano dos clandestinos políticos sob um ponto de vista tão peculiar. Incapaz de compreender as dimensões do embate que testemunha, a menina arrancada dos confortos da infância compreende no entanto que não faz parte de um jogo de crianças. Laura, que vê serem-lhe atribuídas responsabilidades de adulta, não é poupada do desgaste emocional nem do pavor de serem descobertos, presos ou exterminados. Na guerra, não se permitem fraquezas nem se atribuem imunidades.

Recomenda-se, ao longo da leitura, que não nos esqueçamos do seu fundo autobiográfico, e que, ao chegarmos ao final, dediquemo-nos às pessoas nela retratadas: não é sempre que o leitor pode encontrar tantos registros e fotografias das personagens sobre as quais esteve a ler. Da mesma forma, uma vez que a narrativa se restringe ao ponto de vista da menina, a internet pode servir de epílogo e dar a conhecer o verdadeiro “final da história”.

Mas toda reprodução não deixa de ser recriação. Assim, é preciso assinalar que, do ponto de vista literário, o livro de Alcoba deixa algo a desejar. É de se imaginar que a intenção da autora tenha sido ser ao máximo fiel às lembranças de infância, e que ela não tenha querido preencher os inevitáveis lapsos de memória com interpretações e juízos posteriores. No entanto, é inegável que La casa de los conejos deixa a sensação de que poderia ter ido mais longe, entrado mais em detalhe, e desenvolvido melhor algumas personagens centrais que se vão perdendo com o tempo, como, por exemplo, a mãe. Com um tema deveras apaixonante e uma qualidade narrativa bastante aguçada, o livro teria merecido ser, pelo menos, cem páginas mais longo.

Escrito originariamente em francês, La casa de los conejos já foi traduzido para diversos idiomas, dentre os quais o espanhol, o inglês, o alemão, e até mesmo o sérvio. No entanto, o português ainda não faz parte dessa lista. Vergonhosamente para nós, permanecemos ainda, também no que compete ao alcance do mercado editorial, a anos-luz de distância de um dos nossos vizinhos mais próximos.

Título original: Manèges

País: Argentina

Idioma original: francês

Ano de publicação: 2007

Edição espanhola: La casa de los conejos – Edhasa (ISBN 978-843-5010-24-5)

Edição em português: não há

Número de páginas: 136 (edição espanhola)