Sobre o Dylan, o Nobel, a política e a dor de cotovelo

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Outubro costuma ser o mês em que a literatura volta a ser assunto de jornal e de conversa à mesa do chá da tarde – nem que seja por um dia ou dois. Este ano, a divulgação do resultado do Prêmio Nobel da Literatura deu tanto o que falar que eu hoje até abri mão de publicar a minha resenha semanal para meter a colher na polêmica.

Para começo de conversa, é preciso dizer que a data de divulgação do prêmio não poderia ter sido mais providencial: no mesmo dia em que a Academia Sueca divulgava o resultado de 2016, morria um outro Nobel da Literatura: o italiano Dario Fo. Houve quem visse na coincidência um certo presságio do Apocalipse – enquanto os velhotes suecos anunciavam a degradação absoluta de sua capacidade de julgamento coroando com a mais alta medalha literário um mero cantor, o velho laureado batia as botas em protesto. Só me resta perguntar se aqueles que assim o pensam já alguma vez leram Fo. Apostaria meu braço direito que não. Afinal, o Nobel do italiano em 1997 tem motivos de sobra para ter sido ainda mais polêmico que o Nobel de Bob Dylan. Dario Fo, dramaturgo e ativista político de talento inquestionável, pode ter sido muita coisa. Mas se tem uma coisa que ele nunca foi nem nunca tentou ser, foi escritor de “literatura”.

Bob Dylan, por sua vez, aproxima-se muito mais do conceito clássico de poeta que muitos de seus antecessores na lista do Nobel literário. Svetlana Aleksievič, por exemplo, a jornalista bielorussa ganhadora do ano passado. Com a diferença que ela ninguém conhecia – sua obra nem sequer traduzida para o português se encontrava -, de modo que a pseudo-intelectualidade não se julgou competente para palpitar. Preferiu fazer cara de entendida e correr à internet ler resumos de seus livros.

De que Dylan é um poeta de mão cheia já muita gente se havia apercebido. Há décadas que suas letras tem sido tema de teses de doutorado em literatura, ou publicadas em edições especializadas como se fossem poemas. Questionar os méritos de Dylan como escritor seria, neste caso, por em causa o próprio conceito do que é literatura. Afinal, dizer que ele não merecia o Nobel por ser um músico é o mesmo que negar a própria origem do que hoje conhecemos por literário – a arte de contar histórias de forma oral, diante de uma audiência ativa e participativa. Ademais, há anos que sabemos que o conceito usado pelos velhos suecos não é assim tão rigoroso – basta pensarmos no caso de Fo, acima citado, ou no de um outro laureado ilustre, Winston Churchill, Nobel da Literatura de 1953. Isso mesmo, aquele que governou a Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial. É verdade, ganhou o Nobel da Literatura, podem ir conferir!

Mas por que o Nobel do Bob Dylan incomoda tanta gente? Simplesmente, por que se trata de um cantor popular, e que o popular não costuma se misturar com as altas esferas da literatura. Sobretudo para gente que vai às livrarias uma vez por ano, quando sai o resultado do prêmio, a fim de comprar mais um peso de papel para a estante e fazer boa impressão às visitas. Gente que não lê, ou que talvez já tenha folheado meia página de um Murakami, e que por isso mesmo torcia pelo japonês – eterna promessa e cavalo de apostas. Que grande oportunidade não perdeu essa gente de impressionar as visitas nos seus salões de chá! Isso para não falar no desespero das livrarias, acometidas a uma recessão sem precedentes. Não vão elas mudar de ramo e passar a vender CDs quando chegar o Natal!

Mas o que eu ainda não disse é que eu também não estou feliz com o Nobel do Bob Dylan. Porque toda a gente capaz de ler as entrelinhas sabe bem que a Academia sueca é a FIFA das Artes, das Ciências e da paz mundial. Que as suas decisões estão calcadas em política e num jogo de interesses, muito mais que nos méritos de cada um de seus ganhadores. Não fosse por isso, não teria Barack Obama ganhado o Nobel da Paz sem jamais o ter merecido, ou a menina Malala, para fazer boa impressão e legitimar o antiterror… Pode parecer que estou misturando alhos com bugalhos, mas não estou: apenas estou dando um exemplo de como o Nobel é usado ano a ano como um instrumento de dominação de uma elite branca, eurocentrada e falocrata.

Voltemos para a literatura? Dos 113 vencedores do Nobel de 1901 a 2016, apenas 14 eram mulheres, apenas 10 nasceram no Hemisfério Sul, e apenas um (dois, se considerarmos o mulato Derek Walcott) era negro. Das línguas representadas, 27 escreviam em inglês, 105 em línguas europeias. A França, país de 66 milhões de habitantes, já ganhou mais prêmios Nobel da literatura (15) do que a África, a Ásia, a América do Sul e a Oceania juntos. Quase 50% dos laureados eram cristãos praticantes. Apenas um (Jean-Paul Sartre) teve culhões para o recusar. Já deu para perceber?

Em vez de criticar o Nobel do cantor, está mais do que na hora é de criticar a instituição como um todo, ou os seus parâmetros de escolha. E de estender a crítica a nós mesmos, que prestamos tanta atenção a esse prêmio literário que nem prêmio literário é. Afinal, não se trata de um concurso, como muita gente acredita. Ninguém ganha o Nobel pelo livro X ou Y. Ganha simplesmente porque a Academia achava que merecia. Tanto que alguns deles nem sequer livros têm.

Já deu por hoje. Semana que vem tem mais resenha. De uma escritora, aliás, laureada pelo Nobel. Ironicamente.

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