A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, de Joca Reiners Terron

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Para compensar o fato de que domingo passado não teve resenha (por motivos de saúde, esclareço, afinal o livro da semana foi lido sim, senhores!), voltamos à quarta-feira premiada, sendo o bônus de hoje um dos meus livros brasileiros contemporâneos preferidos – ou talvez, simplesmente, “o” meu preferido: A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, do escritor mato-grossense Joca Reiners Terron.

Lançado há apenas três anos, este romance curto e viciante flerta com o realismo fantástico argentino enquanto se banha em altas doses de E.T.A. Hoffmann e Edgar Allan Poe. O resultado, no entanto, é sem dúvida exclusivamente tupiniquim. Oscilando constantemente entre a realidade e o sonho – ou talvez seja melhor dizer pesadelo –, a trama é dividida em sete partes, nas quais se entrecruzam as vidas de personagens distintas em torno de um grande mistério: quem será a criatura misteriosa que habita um antigo casarão mal-assombrado em pleno bairro do Bom Retiro, na cidade de São Paulo? O ser, identificado como sendo do sexo feminino, apesar de ser constantemente chamado de “criatura”, tem o tamanho e a fragilidade de uma menina de cinco anos, mas a sua pele carcomida por uma doença rara faz dele um monstro de aparência assustadora. Exímia desenhista, a criatura entretém-se no seu exílio forçado, acompanhada somente de uma enfermeira especializada em doenças terminais, em desenhar leopardos-das-neves. Diante da notícia de que um desses belíssimos animais, capturado das tundras siberianas, encontra-se em cativeiro no zoológico de São Paulo, a bondosa enfermeira decide levar sua protegida para um safári noturno que certamente não terá um final feliz.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, ou quem sabe ainda numa realidade paralela, um escrivão da polícia mulato, filho de um judeu e de uma prostituta, intercala noites insones de trabalho numa delegacia com dias intermináveis a cuidar do pai demente, um homem seco que parece nunca se ter dado conta de sua existência. Ainda se encontra por ali um taxista psicopata, cuja menina dos olhos são três cães assassinos, transformados por ele numa verdadeira máquina de guerra. Enquanto o homem se encontra à procura de sua próxima vítima, a criatura moribunda se prepara para o seu derradeiro passeio.

Empolgante e original, o romance de Terron destaca-se por fugir completamente do lugar-comum em que se encontra o romance urbano brasileiro, com seus intermináveis retratos da miséria humana exacerbada pelos noticiários da Rede Globo. Para mim, o livro se destaca não apenas pela boa história, mas sobretudo pela sua força narrativa. O estado de sonambulismo de suas personagens transpassa a história contada e se revela no cerne da própria narração, de modo a fazer qualquer leitor perder o sono para poder chegar ao final de uma só assentada.

Quem ainda não estiver convencido de que esta é a leitura perfeita para o feriado da Páscoa, pode-se deixar embalar pelo trailer (essa moda de trailer de livros parece que está mesmo a pegar!):

 

Título original: A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves

País: Brasil

Idioma original: português

Ano de publicação: 2013

Edição brasileira: Companhia das Letras (ISBN 978-853-5922-34-9)

Edição portuguesa: não encontrada

Número de páginas: 176

O bônus da quarta: Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato

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Para marcar a primeira quarta-feira do ano novo, e para assinalar as minhas boas intenções, vou tentar atualizar a nossa sessão especial. Embora não se trate forçosamente de um livro desconhecido, sempre é bom recordar aquele que se tornou um verdadeiro clássico da literatura brasileira do princípio do século XXI: Eles eram muito cavalos, do escritor mineiro Luiz Ruffato.

Publicado inicialmente em 2001, o livro é composto por uma série de micronarrativas, todas elas alinhadas de forma caleidoscópica, de modo a apresentar um retrato multifacetado da cidade de São Paulo. Além da unidade de espaço, o único elo entre elas reside no fato de que se passam praticamente em simultâneo, num único dia: 9 de maio de 2000. Desafiando os parâmetros da prosa tradicional, Ruffato usa e abusa das formas convencionais, como a narrativa linear em primeira e em terceira pessoa, a epístola, o diálogo e o monólogo interior, mas também explora o valor literário de uma série de textos inusitados. São eles o cardápio de um restaurante, a lista de livros que compõem uma biblioteca, folhinhas de orações, previsões de astrologia, anúncios de serviços sexuais, entre outros. O resultado é um patchwork de textos dissonantes tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo, mas que refletem a singular pluralidade de sua verdadeira protagonista: a maior cidade da América do Sul.

Durante a leitura, com a qual leitor nenhum poderá se aborrecer, é interessante refletir sobre os motivos que fazem com que alguns dos textos acabem por se tornar literatura. Afinal de contas, é o olhar poético do autor, e não o seu valor estético individual, bem como o fato de terem sido agrupados num mesmo compêndio, o que lhes dá força e vitalidade. Estão presentes ainda em Eles eram muitos cavalos alguns dos temas recorrentes da literatura brasileira na virada do novo milênio – tais como o stress do cotidiano, a onipresente violência urbana e a solidão dos indivíduos na cidade grande –, bem como alguns motivos eternos – como  a (des)esperança no futuro, a luta de classes, e assim por diante.

Uma vez que encontrar um gênero literário único para classificar um livro tão complexo seria uma tarefa impossível, preferimos ficar com a definição do autor, e o chamar “instalação literária”. Em todo caso, trata-se de um livro não apenas extremamente agradável, rápido e fácil de ler, mas também de um contributo essencial para o “renascimento” da literatura de expressão lusófona na aurora do século XXI. Simplesmente, um livro que obrigatório a todos aqueles que querem tentar entender o mundo em que vivemos.

 

Título original: Eles eram muitos cavalos

País: Brasil

Idioma original: português

Ano de publicação: 2001

Edição brasileira: Companhia das Letras (ISBN 978-850-1079-61-9)

Edição portuguesa: Quadrante (ISBN 978-972-8962-02-9)

Número de páginas: 160 (edição brasileira)

Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera

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Para abrir com chave de ouro um mês cujas temperaturas assustam tanto brasileiros (pelo calor excessivo), quanto portugueses (devido às chuvas torrenciais), nada melhor que a companhia de um bom livro. E eis a minha sugestão brasileiríssima desta quarta: Barba ensopada de sangue, aclamado romance do jovem escritor Daniel Galera, um livro que contem tudo o que é necessário para um bom começo de mês.

O livro conta a história de um nadador profissional, cujo nome nunca chegamos a conhecer, que decide abandonar a vida citadina na capital do Rio Grande do Sul e instalar-se em Garopaba, um vilarejo de pescadores no litoral de Santa Catarina, onde, décadas antes, seu avô teria sido assassinado. Conforme sugere uma velha fotografia, o neto seria muito parecido com o antepassado que nunca conhecera, sendo este talvez o motivo para sua curiosidade aguçada. O exílio voluntário, decorrente de uma decepção amorosa, segue-se ao suicídio do pai, que pouco antes lhe confiara a cachorra Beta, fazendo-lhe jurar que a levaria para ser abatida. Incapaz de cumprir a promessa, embora consumido pela culpa por se negar ao último desejo de um homem, Beta acaba por se tornar sua única companheira numa terra inóspita, cujos ares de paraíso turístico desaparecem por completo ao fim de cada temporada. Visto pelos habitantes do local como uma espécie de ameaça, sobretudo após começar a fazer perguntas incômodas sobre um passado do qual ninguém parece estar disposto a falar, o nadador solitário observa calado a animosidade crescente em relação à sua pessoa. No entanto, longe de o fazer abandonar sua busca, a atmosfera de ameaça só serve a aumentar seu inexplicável desejo de desenterrar os supostos mortos de Garopaba. Até este ponto, talvez até estivéssemos diante de uma história comum, não fosse o protagonista portador de uma condição neurológica beirando o inimaginável, que o condena a relacionar-se com outros seres humanos de maneira pelo menos peculiar.

Indicado para o Prêmio Portugal Telecom 2013, o livro alcançou em seguida as prateleiras ultramarinas, motivo pelo qual também os leitores lusos podem se alegrar. Afinal, trata-se de um romance dificilmente classificável, mas cuja força reside sobretudo no enorme potencial de Galera enquanto narrador, que constrói um texto ao mesmo tempo plácido e cheio de tensão. Mesmo se, ao nos aproximarmos do final, muitas lacunas permanecem desnecessariamente sem solução, a grande maioria dos elementos acaba por convergir num desfecho predestinado, dando mostras de grande coesão textual. Por fim, ganhamos a impressão de que o círculo se fecha de forma tão bem-sucedida, que o desejo de reler desde o princípio acaba se tornando inevitável.

Mesmo não sendo um livro perfeito, este jovem escritor com muito chão pela frente oferece-nos a literatura brasileira no melhor da sua forma: crítica, cativante, envolvente. Pretensiosa, certamente, mas no melhor sentido do termo.

Título original: Barba ensopada de sangue

País: Brasil

Idioma original: português

Ano de publicação: 2012

Edição brasileira: Companhia das Letras (ISBN 978-853-5921-87-8)

Edição portuguesa: Quetzal (ISBN 978-989-7221-39-2)

Número de páginas: 424 (edição brasileira), 392 (edição portuguesa)

Deus foi almoçar, de Ferréz

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Dando prosseguimento às quartas-feiras especiais, e desde já pedindo desculpas pela ausência da semana passada, a resenha de hoje retoma o nosso percurso pela literatura brasileira com um escritor que definitivamente já faz parte do nosso cenário literário: o paulista Reginaldo Ferreira da Silva, mais conhecido como Ferréz.

Quem pensa em Ferréz, pensa inevitavelmente em Capão Pecado ou Manual Prático do Ódio, nos quais o autor explorava a temática da inevitabilidade da violência, bem como a criminalidade como eventual possibilidade de ascensão social. Mas pensar em Ferréz significa igualmente deixar-se transportar pelas vielas e quebradas da periferia de São Paulo, com suas paredes grafitadas e seus eternos muros de concreto. Em Deus foi almoçar, encontramos o mesmo cenário, porém habitado por uma outra espécie de miséria. Calixto, seu protagonista, é o protótipo do homem comum, desses com carteira assinada, livro de pontos e marmita feita pela esposa. Seu mundo começa a ruir no momento em que se encontra sozinho: abandonado pela esposa, suas ambições pequeno-burguesas logo se despedaçam. Vítima de uma depressão, sua sede de afeto só é aliviada por encontros esporádicos com criaturas igualmente desesperadas: uma ensebada prostituta, uma vizinha de meia-idade que fala com seus cachorros, uma antiga colega de escola manca, ou um amigo evasivo. Incapaz de interagir com o mundo ao seu redor, Calixto entrega-se cada vez mais às lembranças de um passado cujo idílio talvez nem sequer tenha existido, enquanto seus devaneios são acompanhados pelo barulho incessante de uma televisão eternamente ligada. Haverá alguém do outro lado da tela, ou estará Deus simplesmente em horário de almoço?

Deus foi almoçar distingue-se muito dos outros livros até então publicados por Ferréz. Do ponto de vista geográfico, encontramo-nos como sempre na periferia paulista, embora os marginais e as criaturas da noite não estejam mais em primeiro plano. Embora o confronto quotidiano do homem moderno com a violência urbana sempre volte à tona – seja por meio de garotas violadas, seja no envenenamento intencional de animais domésticos, ou mesmo em acidentes de trânsito ou brigas de bar –, o foco encontra-se sobretudo numa outra espécie de violência: a incomensurável brutalidade de se sentir sozinho no mundo. Do ponto de vista narrativo, pode-se notar uma maior maturidade do autor, que desenvolve uma prosa mais seca, menos vertiginosa, voltada sobretudo para o interior das personagens. Por vezes, o livro intercala narrativa tradicional e fluxo de pensamento, sendo que a ponte entre um e outro pode até mesmo se encontrar no interior de uma única frase. O resultado é um labirinto diegético, no qual temos os sentimento de imergir a medida em que o livro avança, permitindo uma relação de total empatia com um protagonista cujo destino poderia ser o de cada um de nós.

Embora não venha forçosamente a ser o Ferrés favorito da maioria, trata-se de um livro a não deixar de ler: desses que de forma alguma nos levantam a moral, mas cujo niilismo e desespero existencialista são a cara da sociedade em que vivemos.

Título original: Deus foi almoçar

País: Brasil

Idioma original: português

Ano de publicação: 2012

Edição brasileira: Planeta do Brasil (ISBN 978-857-6658-89-4)

Número de páginas: 239

O bônus da quarta: O invasor, de Marçal Aquino

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Continuando a cruzada pela literatura brasileira contemporânea que iniciamos há duas semanas, revisitamos hoje o trabalho de Marçal Aquino, que tem se destacado no cenário literário brasileiro como um dos mais fieis sucessores do chamado “realismo feroz”. O termo, criado nos anos 1970 pelo crítico literário António Cândido para classificar a obra de Rubem Fonseca, pode (e deve) ser considerado anacrônico. Afinal, estamos a falar de uma literatura jovem, que busca na inovação da forma e da linguagem novos caminhos para tematizar a “violência endêmica” de que falava Sheherazade. Verdade é, no entanto, que na ausência de melhor definição, vamos ficando com esta.

Lançado em 2002 – e republicado recentemente pela Companhia das Letras –, O invasor marca o início da carreira de Aquino como autor de ficção adulta, e foi escrito paralelamente à criação do roteiro para um filme homônimo, lançado no mesmo ano. A trama, que pode ser resumida em poucas linhas, poderia ter sido extraída da seção de atualidades policiais de qualquer jornal brasileiro: dois empresários bem-estabelecidos contratam um matador de aluguel a fim de se livrarem do sócio majoritário da empresa que possuem. O crime, motivado por divergências, digamos, “ideológicas” – o morto não estava de acordo que eles fechassem um contrato milionário, envolvendo lavagem de dinheiro, com representantes do governo –, tem consequências inesperadas quando o matador decide tornar-se “amigo” dos mandantes, e passa a namorar a filha do homem assassinado.

A partir deste breve resumo, temos já uma clara noção do tipo de leitura que nos espera. Trata-se uma narrativa frenética, por vezes mesmo claustrofóbica, marcada pelo ritmo acelerado das películas policiais, mas que no entanto carece do elemento preferido dos filmes hollywoodianos: não existem mocinhos. Quando muito, podemos falar em anti-heróis, sobretudo ao pensarmos no matador Anísio, cujas (más) intenções podem ser compreendidas como uma tentativa de ascensão social levada ao extremo. O livro, aliás, põe em causa até mesmo o próprio conceito de protagonista, já que os protagonistas iniciais, Ivan e Gilberto, vão aos poucos perdendo espaço para o assassino de aluguel, que assume no final o estatuto de personagem principal.

Classificar O matador como um mero romance policial – aos moldes, por exemplo, de uma Patrícia Melo –, seria, no entanto, limitar o trabalho de Aquino a apenas uma de suas muitas facetas. Afinal, as pouco mais de cem páginas nas quais o livro se compõe abarcam não apenas uma história empolgante, mas também uma miniatura da própria realidade brasileira. A crítica político-social torna-se latente com o retrato de uma sociedade na qual os bandidos não são feios e maus, mas sim pessoas comuns, do tipo que chamaríamos mesmo “homens de bem”, capazes no entanto de chegar à barbárie devido à ganância. Uma sociedade na qual se mata em nome do poder, e o poder é caracterizado pela palavra-chave do nosso tempo: a corrupção. Em nome do dinheiro, abdica-se de uma vida inteira de cidadãos-modelo, e entra-se no círculo vicioso de se cometer um crime para esconder o anterior. Parafraseando Nelson Rodrigues, trata-se de um pequeno retrato da vida como ela é.

Título original: O invasor

País: Brasil

Idioma original: português

Ano de publicação: 2002

Edição brasileira: Companhia das Letras (ISBN: 978-853-5918-04-5)

Número de páginas: 128 (edição brasileira)

O bônus da quarta: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino

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Dando continuidade ao projeto paralelo iniciado há uma semana, o “bônus da quarta” de hoje tem como foco um dos mais talentosos discípulos de Rubem Fonseca: o escritor e roteirista Marçal Aquino.

Pessoalmente, ler Aquino aos trinta e poucos anos é como abrir uma porta para um passado querido. Para quem não se lembra, o autor iniciou a sua carreira nos anos 1990 com alguns clássicos da saudosa Série Vagalume, como O jogo do camaleão e A turma da rua quinze. Para aqueles que descobriram o prazer pela leitura por meio de seus livros, reencontrá-lo, duas décadas e meia mais tarde, em uma prosa madura e ainda cheia de mistério é como rever um velho amigo depois de anos de afastamento.

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é talvez, seu livro mais conhecido, sobretudo graças à adaptação cinematográfica de grande sucesso (ver trailer aqui). O livro narra a história de Cauby, um fotógrafo de longa carreira que, no entanto, já viveu dias melhores. Graças a uma bolsa para a realização de um livro-documentário sobre as damas do garimpo, Cauby abandona a capital paulista para se embrenhar no interior do Pará, e acaba por se perder naquela terra de ninguém. Afora eventuais trabalhos para a perícia forense ou sessões fotográficas eróticas para as prostitutas locais, entretém-se em conversas com um jornalista pseudogótico à beira da morte, ou com um chinês declaradamente pedófilo, seus únicos amigos, até que se apaixona pela misteriosa Lavínia, ex-prostituta e esposa de um pastor evangélico. Lavínia, que também é Shirley, são na verdade muitas mulheres, as quais parecem se unir para levar o protagonista à beira da loucura.

Narrado em primeira pessoa, o livro desenvolve-se a partir da perspectiva do amante desafortunado, que mescla o presente a um passado não muito distante ao tentar reviver sua curta e atribulada história de amor. Ao fazê-lo, serve-se de uma linguagem forte, vulgar, pictográfica e não raras vezes escatológica, cuja racionalidade é acrescida pelas frequentes citações de um suposto tratado filosófico sobre “as fezes da alma”, escrito pelo fictício Benjamim Schianberger. Como resultado, temos uma história de amor sem máscaras nem clichês, que subverte a própria lógica da narrativa amorosa, desafiando seus limites de maneira quase naturalista, e mostrando que a beleza mais sincera só pode mesmo descender do Feio absoluto.

Seria injusto, no entanto, concentrarmos nosso olhar apenas na narrativa amorosa, já que o livro possui tantas outras camadas para além da superfície. Em alguns momentos, temos mesmo a impressão de que o casal protagonista apenas serve de pretexto para explorar temas de relevância universal, como os vários níveis de violência que regem os recôncavos do Brasil, alheios ao pacto social da chamada pós-modernidade, e à espera do menor movimento para explodir numa catarse coletiva. Trata-se de um universo primitivo e violento, governado pelo instinto e por antigos códigos de honra, e que se caracteriza por privilegiar todas as formas de dominação ao mais fraco, das mais óbvias às mais sutis. Esse mundo, habitado por matadores de aluguel e excluídos de toda espécie, assemelha-se fortemente aos sertões de que nos falaram alguns dos nossos maiores escritores do século passado. Ao abandonar o seu terreno familiar, ou seja, as grandes cidades, e voltar-se para o interior, Aquino dá nova vida a essa literatura.

Se todas as histórias de amor fossem tão infelizes, cruas e honestas como aquela de Cauby e Lavínia, o gênero certamente faria parte dos meus preferidos.

Título original: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

País: Brasil

Idioma original: português

Ano de publicação: 2005

Edição brasileira: Companhia das Letras (ISBN: 978-853-5907-36-0)

Edição portuguesa: não há

Número de páginas: 229 (edição brasileira)

O bônus da quarta: Amálgama, de Rubem Fonseca

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Para compensar minha ausência de quatro semanas, bem como para provar que quatro semanas sem resenhas publicadas não necessariamente significaram quatro semanas sem livros lidos, decidi, a partir de hoje, presentear os leitores com uma resenha especial às quartas-feiras. A essa pequena série, que terá como foco textos contemporâneos da literatura brasileira, ouso dar o título de “o bônus da quarta”.

E quem melhor para abrir uma série especial senão um de nossos escritores mais lúcidos, queridos e prolíferos? É claro que se trata do grande mestre Rubem Fonseca, que, no auge dos seus noventa anos, ainda continua a escrever diariamente, tendo publicado, apenas desde a virada do milênio, cinco romances, seis volumes de contos e um de crônicas. Amálgama, seu penúltimo livro, consiste numa coletânea de contos, e oferece ao leitor uma pequena amostra de que sua pluma continua mais afiada do que nunca.

Ao longo das 34 histórias predominantemente curtas e de difícil catalogação que compõem o livro, Fonseca esmiúça o universo que o consagrou como um dos autores mais polêmicos da geração pós-64. Nelas, ganham voz as minorias étnicas e sociais, um submundo marcado pela criminalidade e pela ausência de escrúpulos, bem como todo tipo de pequenas vilanias que permeiam o cotidiano das grandes cidades na era pós-industrial. Seus heróis continuam cínicos, alguns deles doidos, embora cada vez mais desencantados com o mundo, e apresentam por vezes um refinamento cultural e uma consciência inusitados.

Sequestros-relâmpago, assassinos de animais de estimação, justiceiros urbanos, tráfico de bebês, infanticídios e parricídios coexistem no universo fonsequiano, o qual, se não tem a intenção de mimetizar o real, tenta pelo menos reproduzir a realidade construída pelos jornais sensacionalistas e programas de TV. Trata-se de contos ásperos e, em sua grande maioria, com desfechos impactantes, que estabelecem amiúde um diálogo direto com assuntos fortemente mediatizados. Por vezes, o flerte com o sensacionalismo torna-se particularmente marcante – como por exemplo em “O filho”, no qual uma criança nascida sem um braço é jogado pela mãe na lata de lixo. Em outras ocasiões, o esdrúxulo dá lugar ao inverossímil, como no conto “Devaneio”, em que um homem gasta todas a sua herança para realizar o antigo sonho de furar um peito de silicone com uma agulha. Como não poderia deixar de ser, o humor e a ironia fazem-se presentes, seja na fantasia fetichista com anões e corpos deformados, seja no olhar áspero e sem rodeios sobre as mazelas da sociedade. Em todo caso, ao lado da linguagem seca e da estetização consciente da violência, predomina um humor negro, profético, mas não de todo resignado, desses que preferem dançar à beira do abismo a chorar diante da tragédia.

Do ponto de vista formal, não estamos diante de textos que buscam explorar os limites da narrativa ou desbravar, por meio da experiência da violência, novos caminhos para a linguagem literária. Pelo contrário: os contos de Amálgama são predominantemente lineares, e se desenvolvem seja por meio de um relato confessional em primeira pessoa, seja pelo relato objetivo e jornalístico que marcaram a carreira do autor ao longo do século XX. Nesse sentido, é possível afirmar que o livro oferece um pouco mais do mesmo. Mas por que, afinal, mexer num time que já está ganhando desde 1963?

E que venha mais Fonseca!

Título original: Amálgama

País: Brasil

Idioma original: português

Ano de publicação: 2013

Edição brasileira: Nova Fronteira (ISBN: 978-852-0935-36-1)

Edição portuguesa: Sextante (ISBN: 978-989-6761-20-2)

Número de páginas: 160 (edição brasileira), 144 (edição portuguesa)

Reprodução, de Bernardo Carvalho

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No aeroporto, um homem é retirado da fila do check-in após testemunhar a detenção de uma chinesa, sua antiga professora, supostamente envolvida com o tráfico de drogas, que vinha acompanhada de uma criança de cinco anos. Levado ao posto da Polícia Federal do próprio aeroporto, o irritante passageiro, alcunhado “o estudante de chinês”, divaga sobre o tudo e o nada tomado pela angústia da espera, enquanto vê escoarem as horas. Eis o ponto de partida para a comédia de erros contada em Reprodução, o mais recente romance do escritor e jornalista carioca Bernardo Carvalho.

Narrado sobretudo em primeira pessoa, o texto faz pensar em um monólogo teatral em três atos. Na primeira e na terceira parte, a narrativa reproduz as respostas do estudante de chinês ao delegado que o prendera; na segunda, uma outra personagem, identificada como “a delegada”, assume a voz narrativa e introduz novos elementos. Durante todo o romance, o delegado aparece apenas como um interlocutor implícito, podendo-se adivinhar suas reações a partir das falas dos dois narradores. Com isso, temos a impressão de estar a ouvir alguém falando ao telefone, sem entretanto escutar o que diz a pessoa do outro lado da linha.

O estudante de chinês pode ser considerado um típico exemplar urbano do século XXI. Pretensioso leitor de jornais e revistas, ávido consumidor dos meios de comunicação online, o homem de meia-idade acredita ser “hiperinformado”, embora seu conhecimento fragmentado do mundo seja moldado pela Wikipédia, e não o qualifique a expressar ideais próprias. Por isso, segue reproduzindo opiniões mainstream numa espécie de massa incoerente, habituado a descontar as frustrações agredindo minorias em páginas da internet. Em seu discurso pontuado pelo jargão das redes sociais, deixa transparecer a existência vazia de um grande solitário, vítima das ilusões da modernidade digital, que o fazem acreditar que suas opiniões importam, ou que suas ideias têm alguma coisa de original. A delegada, por sua vez, é uma mulher mais velha e nevrosada eternamente em busca de punição, frequentadora de clubes de encontro e igrejas evangélicas, acometida pela culpa por ter falhado como mãe e pelo desejo masoquista de ser subjugada. Juntos, eles revelam pouco a pouco a triste história da chinesa apreendida, ou pelo menos aquilo que eles acham ter entendido do que seria a sua história. Em meio à mais absoluta confusão, descobre-se um pouco do passado do delegado que interroga, bem como o do policial que “raptou” a chinesa, e os destinos individuais de figuras opostas são revelados em meio ao caos da verborragia de personagens perturbadas, cada qual atormentada pelos próprios fantasmas. Seria trágico, se não fosse cômico. Seria cômico, se não fosse a vida.

O livro de Bernardo Carvalho é a cara do início do século XXI. Nele, a crítica à geração internet e à pós-modernidade é mesclada a uma breve análise do homem contemporâneo. Nesse contexto, o título do romance pode ser lido no vasto senso do termo, enquanto a palavra “reprodução” se repete como um Leitmotiv, referindo-se tanto à procriação, como à repetição de erros, à propagação irrefletida de opiniões chavão, e até mesmo à sensação de déjà-vu. Em última análise, o livro pode ser considerado como uma reflexão metalinguística acerca da própria palavra, com suas variações, possibilidades, mas também limitações.

Mas dizer que Reprodução é a cara do nosso tempo não quer necessariamente dizer que o livro seja bom. A ausência de parágrafos, o excesso de devaneio e o fluxo de consciência, que aliás em plena segunda década do século XXI já nada têm de original, chegam a cansar, e o efeito do diálogo com um narrador implícito nem sempre funciona. De modo geral, o estilo é mais bem-sucedido no começo, perdendo-se aos poucos a partir da segunda metade: enquanto na primeira parte a ideia do interrogatório é mantida e as réplicas do delegado podem ser imaginadas, tal efeito desvanece ao longo da narrativa, e o suposto diálogo torna-se inverossímil. Na reta final, o fato de o autor lembrar-se de que existe uma história a ser contada, e abandonar o fluxo de pensamento em prol do clássico narrador em terceira pessoa, faz com que o romance pareça uma colcha de retalhos mal arrematada nas pontas. O que é uma pena, pois Bernardo Carvalho já mostrou que é capaz de mais – e de melhor.

Título original: Reprodução

País: Brasil

Idioma original: português

Ano de publicação: 2013

Edição brasileira: Companhia das Letras (ISBN 978-853-5923-23-0)

Número de páginas: 167