Quem estiver interessado, encontrará facilmente outros (poucos) blogs dedicados a um projeto parecido com o meu: ler um livro de cada canto do mundo. Porém, pesquisando suas listas de leituras, surpreendo-me com tentativas horrendas de forçar uma determinada nacionalidade em cima de um livro, em nome de completar a lista a todo custo. Sete Anos no Tibet, por exemplo, passa a ser um livro do Liechtenstein, porque o autor austríaco viveu nesse país durante alguns anos, enquanto o ultracolonialista Coração das Trevas, de Joseph Conrad, entra na lista como um livro do Congo. Como determinar a nacionalidade de um livro? Quais os critérios a serem levados em consideração?
Foi pensando nisso tudo que descobri Oksana Marafioti, uma cigana que nasceu num país que não existe mais, passou a infância e a juventude de cidade a cidade, e se radicou nos Estados Unidos aos quinze anos de idade. Neste, todos os possíveis critérios de identidade simplesmente não se aplicam – e eis justamente o que confere beleza à sua narrativa.
American Gypsy é um relato estritamente pessoal, escrito em primeira pessoa, sobre os anos de formação de uma rapariga pouco comum. Filha de pai cigano e mãe armênia, Oksana cresceu junto à família do pai, uma trupe de artistas que faziam espetáculos de música e dança por toda a União Soviética. Pouco antes da queda do regime de Stalin, a família conseguiu imigrar rumo à cidade de Los Angeles, onde Oksana tenta então montar o quebra-cabeças da própria personalidade. Nascida na cidade de Riga, hoje capital da Letônia, e oriunda de um país que deixou de existir, a menina que sentira na pele o preconceito decorrente de seu sangue cigano, sonha em ser um dia uma verdadeira americana – a exemplo de um Pinóquio contemporâneo que deseja se tornar um menino de verdade. Suas memórias dos primeiros anos em território americano são entrecortadas por digressões que nos remetem aos confins da Rússia, intercalando passado e presente narrativo de modo a revelar, pouco a pouco, uma biografia peculiar.
Nos Estados Unidos, Oksana descobre que ser cigana não é tão mau assim. Sua origem confere-lhe ares de exotismo, embora o que a adolescente mais anseia é anular suas idiossincrasias, passando a ser só mais um rosto na multidão. Filha de uma mãe alcoólatra e de um pai errante, que abandona a família para viver com a amante mal colocam os pés na terra do Tio Sam, Oksana descreve sua tentativa de se integrar em meio a brigas, ameaças de casamento arranjado e seções de exorcismo, num mundo que pode ser tudo, menos “normal”. Com o tempo, a menina soviética taciturna e sem amigos consegue encontrar o seu lugar no mundo, e se dá conta de que sua força reside justamente naquilo que a distingue dos outros.
Do ponto de vista narrativo, American Gypsy é um livro sem grandes destaques: o texto é correto, sem fortes demonstrações de virtuosismo literário, mas também sem graves defeitos a serem criticados. Seu vocabulário muitas vezes rebuscado, bem como seu apego pelo preciosismo, refletem a busca de uma autora estrangeira por apoderar-se ao máximo de uma língua que não é a dela, o que, longe de atrapalhar, confere à leitura maior autenticidade. Tudo isso é entremeado por uma série de fotografias do álbum familiar de Oksana, criando uma ponte entre realidade e ficção. Eis a fórmula de um livro interessante, que abre uma pequena fresta para um universo que nos é alheio, e que só por isso já merece ser lido. Um livro que é tão letão ou tão americano quanto é universal.
Título original: American Gypsy: A Memoir
País: Letônia
Idioma original: inglês
Ano de publicação: 2012
Edição em português: não há
Edição em inglês: FSG Books (ISBN: 978-037-4104-07-8)
Número de páginas: 383 (edição em inglês)