Reprodução, de Bernardo Carvalho

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No aeroporto, um homem é retirado da fila do check-in após testemunhar a detenção de uma chinesa, sua antiga professora, supostamente envolvida com o tráfico de drogas, que vinha acompanhada de uma criança de cinco anos. Levado ao posto da Polícia Federal do próprio aeroporto, o irritante passageiro, alcunhado “o estudante de chinês”, divaga sobre o tudo e o nada tomado pela angústia da espera, enquanto vê escoarem as horas. Eis o ponto de partida para a comédia de erros contada em Reprodução, o mais recente romance do escritor e jornalista carioca Bernardo Carvalho.

Narrado sobretudo em primeira pessoa, o texto faz pensar em um monólogo teatral em três atos. Na primeira e na terceira parte, a narrativa reproduz as respostas do estudante de chinês ao delegado que o prendera; na segunda, uma outra personagem, identificada como “a delegada”, assume a voz narrativa e introduz novos elementos. Durante todo o romance, o delegado aparece apenas como um interlocutor implícito, podendo-se adivinhar suas reações a partir das falas dos dois narradores. Com isso, temos a impressão de estar a ouvir alguém falando ao telefone, sem entretanto escutar o que diz a pessoa do outro lado da linha.

O estudante de chinês pode ser considerado um típico exemplar urbano do século XXI. Pretensioso leitor de jornais e revistas, ávido consumidor dos meios de comunicação online, o homem de meia-idade acredita ser “hiperinformado”, embora seu conhecimento fragmentado do mundo seja moldado pela Wikipédia, e não o qualifique a expressar ideais próprias. Por isso, segue reproduzindo opiniões mainstream numa espécie de massa incoerente, habituado a descontar as frustrações agredindo minorias em páginas da internet. Em seu discurso pontuado pelo jargão das redes sociais, deixa transparecer a existência vazia de um grande solitário, vítima das ilusões da modernidade digital, que o fazem acreditar que suas opiniões importam, ou que suas ideias têm alguma coisa de original. A delegada, por sua vez, é uma mulher mais velha e nevrosada eternamente em busca de punição, frequentadora de clubes de encontro e igrejas evangélicas, acometida pela culpa por ter falhado como mãe e pelo desejo masoquista de ser subjugada. Juntos, eles revelam pouco a pouco a triste história da chinesa apreendida, ou pelo menos aquilo que eles acham ter entendido do que seria a sua história. Em meio à mais absoluta confusão, descobre-se um pouco do passado do delegado que interroga, bem como o do policial que “raptou” a chinesa, e os destinos individuais de figuras opostas são revelados em meio ao caos da verborragia de personagens perturbadas, cada qual atormentada pelos próprios fantasmas. Seria trágico, se não fosse cômico. Seria cômico, se não fosse a vida.

O livro de Bernardo Carvalho é a cara do início do século XXI. Nele, a crítica à geração internet e à pós-modernidade é mesclada a uma breve análise do homem contemporâneo. Nesse contexto, o título do romance pode ser lido no vasto senso do termo, enquanto a palavra “reprodução” se repete como um Leitmotiv, referindo-se tanto à procriação, como à repetição de erros, à propagação irrefletida de opiniões chavão, e até mesmo à sensação de déjà-vu. Em última análise, o livro pode ser considerado como uma reflexão metalinguística acerca da própria palavra, com suas variações, possibilidades, mas também limitações.

Mas dizer que Reprodução é a cara do nosso tempo não quer necessariamente dizer que o livro seja bom. A ausência de parágrafos, o excesso de devaneio e o fluxo de consciência, que aliás em plena segunda década do século XXI já nada têm de original, chegam a cansar, e o efeito do diálogo com um narrador implícito nem sempre funciona. De modo geral, o estilo é mais bem-sucedido no começo, perdendo-se aos poucos a partir da segunda metade: enquanto na primeira parte a ideia do interrogatório é mantida e as réplicas do delegado podem ser imaginadas, tal efeito desvanece ao longo da narrativa, e o suposto diálogo torna-se inverossímil. Na reta final, o fato de o autor lembrar-se de que existe uma história a ser contada, e abandonar o fluxo de pensamento em prol do clássico narrador em terceira pessoa, faz com que o romance pareça uma colcha de retalhos mal arrematada nas pontas. O que é uma pena, pois Bernardo Carvalho já mostrou que é capaz de mais – e de melhor.

Título original: Reprodução

País: Brasil

Idioma original: português

Ano de publicação: 2013

Edição brasileira: Companhia das Letras (ISBN 978-853-5923-23-0)

Número de páginas: 167

3 pensamentos sobre “Reprodução, de Bernardo Carvalho

  1. Belo texto. Concordo que a forma adotada para contar a história – curta demais, como falei no meu texto – acaba se tornando cansativa. Apesar de não ser certamente o caso, a impressão que dá é que o autor teve um estalo – vou escrever um livro sobre um mal entendido – e foi escrevendo, escrevendo, escrevendo, até que se cansou e resolveu por fim à história. Tive a nítida impressão de um livro ou incompleto ou mal acabado, como se o autor, como você disse ao final do seu texto, pudesse nos entregar muito mais.

    • Obrigada pela visita.
      É verdade… ainda não tive a oportunidade de ler “Mongólia”, que foi muito elogiado, mas minha impressão sobre “O filho da mãe” foi a de que se tratava de um romance bem elaborado, cujo fio condutor não deixa o leitor na mão – como é o caso de “Reprodução”. Espero que possamos encontrar o mesmo sentimento nos próximos romances do autor, que apesar dos pesares escreve muito bem.

  2. Pingback: La librería quemada, de Sergio Galarza | oquevcestalendo

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